quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Chasque às sesmarias

Desde guri sempre ouvimos falar nas auspiciosas estorias sobre grandes enterros de dinheiro, fortunas deixadas pelos sesmeiros, escondidas em suas terras. Muitas vezes esses contos fazem parte da tradição oral de cada família que por meio do enaltecimento de seus antepassados preserva ao pé do borralho aspectos culturais de outrora... Eram vastas as sesmarias no Alegrete, principalmente nas regiões do Jacaqua, Durasnal, Parové e Caverá. Sempre se ouvia cochichos dos tempos de guerra, as vós que ao tricotar para o inverno revelavam façanhas de sua gente, sangue de seu sangue, histórias de guerra, de defesa da terra em repúdio aos Castelhanos. 
Nos tempos em que esta região era livre, as portas sem tramelas, os campos sem aramados, apenas o minuano fazia frente ao rancho que muitas vezes era humilde, feito de pedra e coberto de quincha (capim Santa Fé), no refogar das lembranças ao entardecer, num mundo onde não havia radio nem TV, os antigos contavam seus causos, relatavam como havia sido o seu dia. A simplicidade tomava conta do ambiente, a vida no Sul era "mais viva", sempre havia uma boa carreira, um fandango na casa de algum amigo, momento único para arranjar pretendente para as filhas, seguindo a ordem de nascimento,é claro... Os relatos dos peões, o dia-a-dia da lide campeira, a tradição, o modo de marcar e castrar, o jeito com que se laçava tudo isso era discutido ao anoitecer. 
Brasão do Município de Alegrete/RS

Quando as sombras do rancho não mais estavam debruçadas sobre o oitão, a noite rompia pelas cochilhas, era um cavalo negro que galopava entre os ponteiros do relógio. Na casa havia apenas um relógio, os gaúchos mais tauras e sábios guiavam-se pelo sol durante o dia. Quando a sombra do corpo do cavalo alinhava-se com o pescoço do animal, certamente era meio-dia, hora de voltar para as casas, comia-se a 1 hora da tarde. No silêncio do breu, só murmúrios  no mato, eram os corujões de orelha que assustavam a criançada. Nas noites frias o mate aquecia as almas, sorvendo do amargo a essência para continuar, no fogo de chão o ritual do chimarrão, a cuia passava de mão em mão levando o respeito, a honra e a dignidade. No chiar da chaleira, no choro da cambona, estavam os velhos senhores a contar seus causos. Contavam de patacões de ouro que foram enterrados por seus ancestrais, apontavam uma possível direção, acenando com o semblante firme, enrugando a testa, posicionando o indicador para o poente. Esta lá! Lá que estava enterrado os tesouros dos primeiros sesmeiros, os primeiros alegretenses. 
Se passaram anos e anos, do caldeamento de culturas e nações surgiu uma geração de novos gaúchos, novos alegretenses... Nos infinitos enlaces genealógicos, dependurados nas paredes da memória, defumados com a fumaça e impregnado de picumã, surgiram novas facetas, uma nova gente que nos dias de hoje, aos poucos vai rejeitando as suas origens pampeanas. A próspera Alegrete, sentinela das cochilas, cidade continentina, definha acompanhando as águas do Ibirapuitã. O que houve? Que teria acontecido com uma cidade formada em "plena savana" entre fogo e fumaça, da guerra da Cisplatina?! Nossa gente perdeu a garra, perdeu a vontade de mudar, nossos antepassados estão tristes pois em tempos mais bravios jamais tiraram o pé do estribo, permaneceram sempre na marca, prontos para defender e lutar pelo SANGUE DE SEU SANGUE. Somos todos irmãos, somos descendentes daqueles homens e mulheres que derramaram seu suor neste chão e sonharam com uma grande Alegrete. Daqueles tempos para cá nossa cidade evoluiu muito, mas temos a certeza que podemos ir além. Somos infinitas sesmarias perdidas no tempo, contudo ainda podemos ser o melhor exemplar de um povo que luta dia-a-dia por seus ideais, pela concretização de seus sonhos. 
Aquela gente que lutou em 35, aquela gente que lutou em 98(1898), o povo de 23, os Dragões do Extremo Sul, gente nobre que temos a honra de carregar o sangue, SANGUE DE SEU SANGUE. Esta na hora de fazer esta partilha, abrir os inventários e cada um assumir o seu quinhão, fazer a sua parte. Vamos adiante, antes que o ponteiro do relógio nos faça de esquecidos.  Tenham todos uma boa tarde nesta ensolarada  quarta-feira de cinzas, no Grande Alegrete. :) 

3 comentários:

  1. Excelente texto Clovis! Lembrei de minha infância, quando ouvia essas histórias contadas pelo meu avô, pelos tios e muitas vezes contadas na beira do fogo de chão pelos piões da estância.

    ResponderExcluir
  2. Muito bom o texto. Tradição constrói a história familiar e seus costumes. Resgata o orgulho de ter nascido na campanha, principalmente nos campos do Grande Alegrete. Gurí continues assim ... porque aqui o parente tá aperreado e trancando os garrões para não entregar os tentos para a vovó. A vovó de quando em vez manda reculutar um netinho para encher mate doce lá em riba (no céu).

    ResponderExcluir